sábado, 18 de janeiro de 2014

José de Anchieta e a Biodiversidade

O padre José de Anchieta foi sem dúvida o pai da biodiversidade, o primeiro naturalista da história do Brasil, reconhecido como patrono dos naturalistas brasileiros. Em pleno século XVI, ele defendeu homens que não eram brancos, nem europeus, nem cristãos. 

O padre Anchieta nasceu na ilha de Terenife, nas Canárias, em 1534, e morreu em 1597 na aldeia de Reritiba,no Espirito Santo. Hoje a cidade leva o seu nome. Seu pai era basco, de um vilarejo próximo ao de Inácio de Loyola. Sua mãe, de linhagem nobre. Fez seus estudos de teologia e filosofia em Coimbra, em Portugal. Veio ao Brasil, enfermo, com 19 anos, na comitiva de D. Duarte da Costa, segundo governador geral.

No ano de 1554, junto com o padre Manuel de Nóbrega, Anchieta fundou o terceiro colégio do Brasil. No dia 25 de janeiro foi celebrada a primeira missa no colégio. Ele dará origem ao núcleo urbano da atual cidade de São Paulo. Anchieta construiu também um seminário de orientação perto do colégio e deu aulas de castelhano, português, latim, doutrina cristã e língua brasílica.

Aprendeu o idioma tupi com muita facilidade. Escreveu livros em tupi e uma gramática. Serviu de intérprete e terminou como refém dos índios tamoios, aliados dos franceses e em guerra contra os portugueses. Nessa época, Anchieta escreveu nas areias da praia, e memorizou, um extenso poema dedicado à Virgem Maria. Foi no ano de 1567, quando os jesuítas engajaram-se totalmente na expulsão dos franceses do Rio de Janeiro, orientando e colaborando com o governador Estácio de Sá. Para os índios, Anchieta era médico e sacerdote, cuidava tanto das pessoas doentes ou feridas como de sua espiritualidade.

Foram muitas páginas em suas obras dedicadas à descrição da fauna brasileira. Entre elas, encontra-se uma longa carta dirigida ao padre geral Diolo Laines, e intitulada: Epistola quamplurium rerum naturalium quae S. Vicentii provinciam incolunt sistens descriptionem, ou, em português: "Carta contendo a descrição de numerosas coisas naturais que povoam a província de S. Vicente".

As rerum naturalium eram numerosas e surpreendentes. Muitos dos animais observados por Anchieta não tinham equivalentes na Europa. Como explicá-los, como descrevê-los sem poder compará-los a animais conhecidos? Dois séculos e meio antes de Lineu, Anchieta comportou-se como um pesquisador criterioso. Esse zoólogo pré-lineano observou, mediu, investigou, comparou e só depois descreveu cada animal. O exemplo do tamanduá (Myrmecophaga tridactyla tridactyla, Linnaeus, 1788) ilustra uma das muitas caracterizações circunstanciadas dos animais, realizadas pelo padre Anchieta:


"Há também outro animal de feio aspecto, a que os Índios chamam tamanduá. Avantaja-se no tamanho ao maior cão, mas tem as pernas curtas e levanta-se pouco do chão; é, por isso, vagaroso, podendo ser vencido pelo homem na carreira. As suas cerdas, que são negras entremeiadas de cinzento, são mais rijas e compridas que as do porco, maximé na cauda, que é provida de cerdas compridas, umas dispostas de cima a baixo, outras transversalmente, com as quais não só recebe, como rechaça os golpes das armas;..."

Esse homem curioso e criterioso, capaz de medir o comprimento da parte interna da língua do tamanduá e descrever a espécie com tantos detalhes (como no caso da morfologia da cauda), repete uma frase constante, amplamente aplicada. Certamente, em seu pensamento, ela devia alcançar toda biodiversidade: "não faz mal a ninguém, senão em sua defesa própria".

O primeiro mamífero citado por Anchieta é o iguaraguá, guaraguá ou ainda iauarauá, nomes dados ao peixe-boi marinho pelos indígenas. O Trichechus manatus manatus (Linnaeus, 1758), da família Trichechidae, aparecia na Capitania do Espírito Santo e hoje ainda é encontrado ao sul da foz do rio Goiana, em Pernambuco. 

Na "Relação do Piloto Anônimo", um dos três documentos conhecidos escritos por participantes da armada de Pedro Álvares Cabral, existe a primeira descrição aparente do peixe-boi, ausente na carta de Pero Vaz de Caminha. É a única descrição de um animal brasileiro nesse documento:

"...estes homens têm redes e são grandes pescadores e pescam peixes de muitas espécies, entre os quais vimos um peixe que apanharam, que seria grande como uma pipa e mais comprido e redondo, e tinha a cabeça como um porco e os olhos pequenos e não tinha dentes e tinha orelhas compridas do tamanho dum braço, e da largura do meio braço..."

Anchieta identifica esse animal aquático com um mamífero, pois a fêmea tem mamas nos peitos, onde os filhotes sugam ao nascer ("habet ad pectus, sub quibus et ubera ad quae proprios foetus nutrit"). Mesmo assim, seguindo a nomenclatura de seu tempo, Anchieta o considerava um peixe, por ser aquático, por ser um nadador.

Outro estranho mamífero para os olhos europeus, descrito por Anchieta, foi a anta (Tapirus americanus, Briss).

"É uma fera semelhante à mula, um pouco mais curta de pernas; tem os pés divididos em três partes; a parte superior do beiço é muito proeminente: de cor entre a do camelo e a do veado, tentado para o preto..."

Se para descrever a anta Anchieta  ainda podia recorrer à comparação com alguns animais europeus ou conhecidos, no caso do tatu (Dasipus novemcinctus) ou o bichi-prequiça era impossível. As singularidades do Bradypus tridactylus brasiliensis (Blainville, 1839) levaram Anchieta a evocar, mais uma vez, a obra da natureza ("o dotou a natureza"), com seu pontencial de gerar seres e organismos inimagináveis. Em todos esses casos de animais exóticos, Anchieta nunca evoca diretamente como causa a de um capricho qualquer do Deus criador.

O padre José de Anchieta lançou os fundamentos da história natural brasileira. Ele descreveu 21 espécies de mamíferos, cerca de 20 aves, uma dezena de ofídios, 13 insetos, 11 aracnídeos e crustáceos etc. Ele foi o primeiro autor a relatar o fenômeno da piracema, o movimento migratório de peixes no sentido das nascentes dos rios, com fins de reprodução.

Se o padre Anchieta destacou-se entre os religiosos no tocante à fauna brasileira, nenhum leigo no século XVI pode comparar-se, pelo trabalho científico, ao cronista Gabriel Soares de Souza. Científico porque ele exerceu a ciência de seu tempo e o fez de forma equilibrada, não se fixou nas curiosidades e exuberâncias. Buscou ser sistemático e objetivo. E é mais original do que Plínio, em seu saber enciclopédico. Esse empresário do açúcar, observador atento, foi quem mais descreveu e comentou as espécies da fauna brasileira no século XVI: mais de 350 espécies animais, sempre em relatos zoológicos extensos e circunstanciados.

Fonte: O descobrimento da Biodiversidade, a Ecologia de índios, jesuítas e leigos no século XVI. Evaristo Eduardo de Miranda. Editora Loyola.

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